
Quem o afirma é
Paul Auster, mas a ideia está longe de ser nova. Um inquérito informal na praça seria o bastante para renegar a arte para o fundo do ranking de prioridades.
O que torna uma actividade útil é a necessidade dela: a doença viabiliza o médico, a vontade de pão fresco na manhã de sábado glorifica o padeiro, o crime instaura o juíz, a piromania impõe o bombeiro. Mas que necessidade justifica o artista?
É claro que nesta perspectiva materialista, a arte não é a resposta a uma necessidade imperiosa. Neste sentido, a arte não é tão útil como a medicina ou a recolha do lixo. Por outro lado, a utilidade está aqui associada à produção de um bem ou serviço para usufruto imediato (o pão) ou para a solução de um problema (impedir o crime).
Será então a arte a realização supérflua, quando as necessidades mais elementares estão satisfeitas? Cabe à arte apenas o espaço que resta?
Na verdade, a necessidade de arte é real, como o provam as pinturas rupestres, as danças tribais, os azulejos do metro ou a colecção de CDs. A utilidade desta e de outras realizações mede-se pela intenção que transportam e que é diferente em cada caso. Contudo, a necessidade que lhes subjaz é menos perceptível do que no caso do médico ou do bombeiro. Porque o problema que a arte resolve é de outra ordem. E para o perceber é preciso olhar atrás.
(Sim, agora vem o pavão...) Esta ave impressiona pelo leque de penas na cauda e no topo da cabeça. Estes acessórios não servem para nada. Pelo contrário, são um estorvo. Não nos apercebemos disso quando os vemos nos parques das cidades de província que conhecemos dos passeios de estudo da escola. Mas o pavão do parque é um artifício, como o leite em pacotes no supermercado. Neste sentido, porque não se preocupa com a sobrevivência, o pavão do parque permite-se a ostentação dos atributos. O que espanta é que os colegas em liberdade se permitam a mesma exuberância. As penas do pavão impressionam, a nós como ao pavão fêmea. Mas este é menos superficial e preocupa-se mais com a vantagem reprodutiva: um par vaidoso é interessante, mas é mau pai de família. O peso da cauda não ajuda na fuga dos predadores e as cores são aqui muito pouco discretas, pondo em perigo o próprio e por consequência a família. Então porque sobreviveu a cauda à lei darwiniana?
Na verdade, a história pode ver-se por outro prisma: se o pavão se dá ao luxo desta ostentação barroca (até um pouco kitsch) apesar das desvantagens óbvias, isto é um sinal de fitness da espécie. Ele não só consegue sobreviver aos predadores, mas consegue-o apesar da desvantagem desta vaidade natural, o que é um sinal da sua supremacia.
O que tem o pavão a ver com a arte? A sua história evolutiva obriga-nos a repensar o conceito de necessidade. As realizações culturais do ser humano começaram por surgir como resposta a a necessidades imediatas (ex. os instrumentos de caça são porventura a primeira tecnologia e as habitações mais primitivas são decerto o início da arquitectura). A razão de ser da arte na perspectiva da evolução prende-se com o efeito que ela tem sobe o indivíduo. A arte é um espaço de alheamento da realidade imediata, de tranquilidade ou de experiências alternativas. A vantagem evolutiva vê-se em relação ao stress a que os indivíduos estão votados ao longo da evolução: a sobrevivência da espécie humana é quase um milagre. A dependência prolongada dos progenitores, a falta de mecanismos biológicos de defesa e protecção (pêlo, garras e afins) contra o ambiente e os predadores, resultam num saldo negativo, que só a fantástica invenção da cultura, de realizações como a linguagem e a arte, compensam. A linguagem, por exemplo, permite falar sobre o possível perigo de predadores antes de eles estarem à vista. E a arte porque permite "o descanso do guerreiro" e a retoma do equilíbrio homeostático para enfrentar com sucesso novas situações de stress (ex. alterações do ambiente, presença de predadores).
E o que têm os antepassados a ver com a nossa situação de hoje? Bastante. Se eles pintavam em cavernas, nós vamos ao cinema, lemos livros, visitamos exposições, cantamos, ouvimos cantar. A arte, cuja invenção em termos evolutivos se deu somente ontem, registou um progresso impressionante nos últimos 50 mil anos, mas em essência continua a cumprir o mesmo papel. Ela permite desenvolver competências cognitivas como a criatividade, a imaginação (pensemos na ficção; mas sobre isso, noutra altura), um domínio em que se simulam e testam situações que podem vir a ser autênticas. O stress evolutivo da espécie deixou de ser um problema, mas o stress individual é ainda uma realidade e a arte continua a ser balão de ensaio e válvula de descompressão à escala subjectiva.
A arte existe não porque é inútil, mas porque é útil. A utilidade define-se em relação à necessidade, que no caso da arte não é visível como a doença que incapacita ou imediata como o pão ao sábado. Na sua subtileza, a necessidade da arte revela-se essencial. Quem não acredita imagine a baixa sem livrarias, uma orquestra sem pauta, as paredes despidas do museu, a missa sem lugar, um jornal sem grafismo, a casa sem quadros.
E de repente, é na ausência que utilidade da arte se torna mais visível.